Arquidiocese de Botucatu

A conversão pastoral e as bênçãos aos casais irregulares e homoafetivos

Andrea Tornelli – Vatican News – 21/12/2023

Daqui a três meses o Papa Francisco entrará no décimo segundo ano de seu pontificado. Um pontificado marcado desde o início pelo pedido de uma “conversão pastoral”, como lemos na Evangelii gaudium, a exortação apostólica que traça o curso do magistério do atual Bispo de Roma.

Com lucidez, Francisco ressalta que não estamos vivendo em uma época de mudanças, mas em uma mudança de época. Como Rocco Buttiglione já apontou nestas páginas, comentando a recente declaração que abre a possibilidade de bênçãos espontâneas e não litúrgicas para casais irregulares, incluindo casais do mesmo sexo, cinquenta anos atrás os homossexuais eram decididamente contra o casamento. Hoje, pelo menos em muitos casos, já não é mais assim.

Embora – compreensivelmente – a atenção da mídia tenha se concentrado nos casais homossexuais, a declaração promulgada dias atrás pelo Dicastério para a Doutrina da Fé fala de casais que não vivem de acordo com as normas morais da Igreja. Sem entrar em estatísticas, pode-se dizer que a maioria desses casais é formada por um homem e uma mulher que vivem juntos sem serem casados.

Não é preciso ser sociólogo para perceber a mudança epocal que ocorreu nas últimas décadas: o declínio dos casamentos religiosos e civis, o crescimento exponencial das coabitações (mesmo entre aqueles que foram educados na fé).

A conversão pastoral de que fala o Papa não é uma operação de maquiagem, um simples ajuste de horários, alguns pequenos ajustes nas estruturas. É algo mais profundo, que coloca em questão a responsabilidade de todos, in primis dos ministros ordenados.

O significado etimológico da palavra “conversão” é “mover-se de um lugar para outro”, “voltar-se para alguém ou algo”, “mudar de direção”. A conversão pastoral de que Francisco fala é o convite para uma mudança radical de olhar e de mentalidade, não no sentido de se adequar de alguma forma com o pensamento mundano, diluindo a proclamação cristã, mas exatamente o contrário.

É um convite para revitalizar a proclamação do Evangelho, concentrando-se no essencial, no kerygma, sabendo que estamos lidando cada vez mais com interlocutores que não o conhecem mais. Sabendo que devemos sair, correr riscos, ir ao encontro, encontrar sem preconceitos, ouvir antes de julgar e não esperar que as pessoas venham nos procurar.

A imagem da Igreja como um “hospital de campanha”, tão cara ao Sucessor de Pedro, é um exemplo eficaz. A raiz da conversão pastoral é profundamente evangélica: Jesus nos convidou a não julgar para não sermos julgados, a não nos concentrarmos no cisco no olho daqueles que estão à nossa frente, esquecendo a trave presa no nosso próprio olho. Jesus subverteu as lógicas religiosas e as normas de sua época, indo primeiro aos intocáveis e aos pecadores públicos.

O objetivo da conversão pastoral é um só, e é ele que dá razão à existência da Igreja: a missão. Ou seja, o testemunho do amor infinito de um Deus misericordioso que abraça antes de julgar e que vem ao nosso encontro para nos elevar, se assim o permitirmos, mesmo que tenhamos apenas o desejo de fazê-lo.

Há outra palavra decisiva, ligada à mudança de época, à conversão pastoral e à opção missionária. É o “discernimento”. Uma palavra central também na declaração do Dicastério doutrinal sobre as bênçãos. No documento, que reafirma que a doutrina sobre o matrimônio não muda e que a Igreja só considera lícitas as relações sexuais entre um homem e uma mulher unidos em matrimônio, afirma-se claramente não só que se deve evitar qualquer ritualização, qualquer criação de liturgias ou para-liturgias para as bênçãos de casais “irregulares”, mas também que não se deve esperar ulteriores “instruções” sobre o assunto. Justamente porque isso é deixado para o discernimento dos ministros ordenados.

É uma cruz e uma responsabilidade que recai sobre os ombros dos sacerdotes, que são chamados a assumir sobre si o peso dos dramas das pessoas, chamados a ouvir suas histórias, chamados a acompanhá-las passo a passo em direção a uma compreensão plena do plano de Deus para suas vidas. Essa é uma atividade eminentemente missionária. Imaginar “descarregar” o ônus do discernimento em um manual ou em uma bênção predeterminada é cair na casuística.

É claro que seria mais fácil ter um manual em que tudo estivesse claro, definido, estruturado e analisado em detalhes. Mas não pode haver um manual que contemple a variedade de dramas, histórias pessoais e situações.

O Papa Francisco disse em suas saudações de Natal à Cúria: “Para todos nós é importante o discernimento, essa arte da vida espiritual que nos tira da pretensão de já saber tudo, do risco de pensar que basta aplicar as regras, da tentação de proceder… simplesmente repetindo padrões, sem considerar que o Mistério de Deus sempre nos supera e que a vida das pessoas e a realidade que nos rodeia são e sempre permanecem superiores às ideias e teorias”. Porque “é preciso coragem para amar”.

A fé cristã, continuou Francisco, “não quer confirmar nossas seguranças, fazer com que nos acomodemos em certezas religiosas fáceis, dar-nos respostas rápidas para os problemas complexos da vida”.

O Deus de Jesus Cristo “nos coloca em viagem, nos tira de nossas zonas de segurança, questiona nossas aquisições e, dessa forma, nos liberta e nos transforma”.

Certamente, a declaração sobre as bênçãos questiona, sacode, força  a sair das “zonas de segurança”. O objetivo é encontrar as pessoas onde elas vivem e como elas vivem, não como gostaríamos que elas vivessem, para não apagar a lamparina tremeluzente diante de um pedido de bênção, ou seja, um pedido de ajuda a Deus.

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