A CONJUNTURA EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS
Grupo de Análise de Conjuntura – CNBB (7 de abril de 2020)1
1. Introdução
Iniciamos o mês de abril de 2020 em um dos momentos mais graves da epidemia do coronavírus – COVID-19 no Brasil. Em quase todos os países do mundo (v.g., EUA, Itália, Espanha etc.) a pandemia tem acelerado um conjunto de fatores que não pode ser descrito doutra forma que não pela expressão “crise em escala global”! É nesse contexto que é oferecida esta análise de conjuntura, como forma de estabelecer uma percepção da realidade,2 e propor um diálogo permanente com todos e todas que possam contribuir para uma melhor compreensão do cenário atual (humano, social, econômico e político).
O mundo inteiro já passava por uma crise quando explodiu a pandemia. Haveria um aprofundamento da estagnação econômica3 e um aumento das tensões políticas. O coronavírus foi um catalisador. O Papa Francisco já falava, em 2019, da necessidade de “re-animar”4 “uma economia que mata”!5 O quadro, todavia, não era apenas de uma crise econômica. Nos campos das políticas, das relações sociais e humanas, das ecologias, das exclusões e desigualdades, bem como em tantas outras, havia muitas e profundas tensões estruturais e conjunturais. Estas se agravaram em 2020,6 a partir de uma nova geopolítica7 do coronavírus. Há o risco, conforme tem nos alertado o Papa Francisco, de ocorrer um “genocídio viral”.8
Os números mundiais da pandemia são impactantes. A OMS9 registrou, até o dia 3 de abril, 972.640 casos confirmados de COVID-19 com 50.325 óbitos, sendo 4.826 novos óbitos. Os Estados Unidos da América era o país com maior número de casos, totalizando 213.600, e a Itália acumulava o maior número de óbitos, 13.917. Neste momento a Europa é o continente mais afetado, seguido das Américas. A América Latina está dividida não mais pelas categorias de antes – esquerda ou direita –, mas por governos que estão respondendo melhor (confinamento mandatório, prioridade à vida e, desde o primeiro momento, planos massivos de auxílio financeiro) ou pior à crise.
Diante desses cenários, alguns tópicos são destacados nesta análise.
2. Temas conjunturais
2.1. Dados da pandemia no Brasil
No Brasil, até o dia 6 de abril de 2020, foram confirmados 12.056 casos e 553 mortes decorrentes da COVID-19.10 Entre os dias 2 e 3 de abril foram confirmados 1.146 novos casos da doença, o que representou um incremento de 15% (1.146/7.910) em relação ao total acumulado até o dia anterior. É um quadro muito difícil. E tende a piorar nas próximas semanas.
As características brasileiras, com um quadro social, político, sanitário, ambiental e econômico precário, exigem cuidados específicos. Diante da escalada da pandemia, o país sofre para encontrar um consenso para enfrentar de forma unida as dificuldades a que está submetido. Não fosse apenas a extensão continental, as muitas diversidades, a grande concentração de periferias nos principais centros urbanos (como Rio de Janeiro e São Paulo), as dificuldades do sistema de saúde, a pouca quantidade, a distribuição desigual de leitos (mal distribuídos no país e ocupados, em sua maioria, pelas classes altas e médias),11 o governo federal encontra-se em diversas disputas. E, considerando que a pandemia de COVID-19 é dividida em quatro fases epidêmicas (transmissão localizada, aceleração descontrolada, desaceleração e controle), e que no momento o país se encontra na fase de transmissão localizada (comunitária), com alguns locais passando para a fase de aceleração descontrolada, ainda teremos inúmeros desafios.
A maior parte dos casos concentrou-se na região Sudeste, seguido das regiões Nordeste, Sul, Centro-Oeste e Norte. Em 3 de abril de 2020, passados 37 dias desde a confirmação do primeiro caso de coronavírus no país, a transmissão no país estava ainda em sua “fase inicial”. Contudo, já há alta incidência de casos em quatro estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Amazonas) e no Distrito Federal.12
2.2. Economia
Teremos adiante um período de recessão13 ou, pior, de depressão econômica14 que poderá modificar todo o planeta. Durante um tempo considerável, a política, especialmente a democracia ocidental (ou liberal), foi submetida ao mercado financeiro e à economia globalizada. Essas relações podem ser, mais uma vez, modificadas. O consenso de governos e agências internacionais nesses tempos de pandemia é que a ampliação do papel do Estado e das políticas públicas será a única saída para evitar que a crise seja mais profunda, com um aumento temporário e substancial do déficit público para salvar vidas e evitar uma depressão na economia. Nesta quadra, os principais desafios serão enfrentar o crescimento recorde do desemprego em um período tão curto de tempo, oferecer assistência emergencial aos mais vulneráveis, reduzir o colapso dos sistemas de saúde e reestruturar a economia.
A economia brasileira enfrenta a crise num momento em que se observava uma pequena retomada gradual do crescimento, depois de um bimestre negativo no final de 2019, conforme se depreende dos dados da atividade econômica de janeiro e estimativas do IPEA para fevereiro.15 As medidas de contenção de disseminação da COVID-19 passaram a ser adotadas a partir da terceira semana de março, tornando-se progressivamente mais restritivas: da recomendação para que as pessoas evitassem aglomerações passou-se rapidamente à recomendação para ficarem em casa, estímulo ao trabalho remoto onde possível, cancelamentos de eventos e finalmente fechamento do comércio, dos serviços e limitação dos transportes públicos. Seu impacto sobre a atividade econômica será forte.
2.3. Política
O governo federal perdeu a capacidade de coordenação única ante a crise. Como ficou evidente nas últimas semanas, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, não conseguiu assegurar que o Brasil adotasse o seu modelo de enfrentamento da pandemia. Dois movimentos ocorreram: (a) o fortalecimento do papel do núcleo militar do Palácio do Planalto, composto por quatro ministérios ocupados por militares (Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno; a Secretaria-Geral da Presidência, com o capitão reformado da Polícia Militar, Jorge Antônio de Oliveira; a Secretaria de Governo, com o general Luiz Eduardo Ramos; e o chefe da Casa Civil, general Walter Souza Braga Netto), além do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão;16 e (b) a consolidação de um grupo de ministros que estão dando suporte às decisões do Ministério da Saúde (comandado por Luiz Henrique Mandetta).17
Estes dois núcleos estão tentando responder à crise, mas encontram muitos obstáculos. O governo se preparou lentamente para o tamanho da pandemia. Além disto, o modelo político e econômico defendido pelo ministério tinha como marca um projeto liberalizante com Estado mínimo que se transformou em projétil,18 que se mostrou incapaz e inadequado para atender às necessidades apresentadas pela dimensão da crise atual. Contudo, a principal dificuldade decorre das ações do próprio Presidente da República, Jair Bolsonaro, com um comportamento errático e, muitas vezes, contraditório. Nada muito diferente do “presidencialismo de colisão”,19 que já estava sendo praticado com diversos ataques às instituições democráticas (Congresso Nacional, Judiciário, Imprensa etc.), um populismo de combate crescente (em torno de um conjunto de adeptos e de redes sociais),20 com a desestruturação da assistência social e das políticas públicas, por meio de ataques diretos ou pelo desfinanciamento sistemático, numa arriscada aposta de sair mais fortalecido após o desfecho.21 A resistência ao caos se dá na cúpula do Poder Judiciário (STF e CNJ), de grande parte do Congresso Nacional e de suas principais lideranças (Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre), dos partidos políticos, da sociedade civil, de entidades representativas (OAB, ABI, SBPC, CNBB, Comissão Arns, entre outras), com o apoio da imprensa.
Um dos grandes focos de antagonismo presidencial é o conjunto de governadores dos estados brasileiros.22 O Presidente tem estado em permanente contraposição às ações dos governadores e dos prefeitos. Repetidamente, Jair Bolsonaro tem atribuído aos chefes dos Executivos estaduais23 a adoção de medidas excessivamente restritivas no combate ao coronavírus, por meio do “isolamento horizontal”.24 Mais que uma consequência de um rearranjo do pacto federativo, este enfrentamento vai prosseguir por um tempo considerável em todas as fases epidêmicas e depois. Muitos governadores terão uma aprovação popular superior ao Presidente.
Tais conflitos e avaliações da população têm se registrado nas pesquisas de opinião. Pesquisa XP/Ipespe, conduzida em final de março e começo de abril, mostra uma continuidade na tendência de queda da avaliação positiva do governo Jair Bolsonaro e um aumento das avaliações negativas. Hoje, são 28% os que dizem considerar que o Presidente tem atuação boa ou ótima, contra 42% que atribuem avaliação ruim ou péssima – os números são o menor e o maior da série histórica, respectivamente. No levantamento do início de março, eram 30% com avaliação positiva e 36% com avaliação negativa. A mudança coincide com uma melhora na imagem do Congresso e de governadores. O Legislativo passou a ser visto como ótimo ou bom por 18% da população, contra 13% na pesquisa anterior. A avaliação negativa caiu de 44% para 32%. Em relação aos governadores, o ótimo/bom passou de 26% para 44%, e o ruim/péssimo, de 27% para 15%. A atuação dos profissionais de saúde é a que tem melhor avaliação no enfrentamento à crise. São 87% os que dizem avaliá-la como ótima ou boa. Entre agentes públicos, Mandetta e o Ministério da Saúde são os mais bem vistos pela população: 68% têm avaliação positiva e 7%, negativa. Para Paulo Guedes e Ministério da Economia, os números são 37% e 18%. A ação do Congresso é ótima ou boa para 30% e ruim ou péssima para 25%, e a de Bolsonaro, positiva para 29% e negativa para 44%. Sobre as finanças pessoais, 82% acreditam que serão afetados, sendo que metade da população relata já ter sofrido algum impacto.25
Da mesma forma, pesquisa do DataFolha, feita de quarta (1º) até a última sexta (3), apontou um cenário muito próximo. Comparando a pesquisa anterior, realizada entre 18 a 20 de março, o Presidente viu sua reprovação na emergência sanitária subir de 33% para 39%, crescimento no limite da margem de erro. A aprovação segue estável (33% ante 35%), assim como a avaliação regular (26% para 25%). Em sentido inverso, a avaliação do Ministério da Saúde e de seu ministro, que tinha uma aprovação de 55%, saltou para 76%, enquanto a reprovação caiu de 12% para 5%. Foi de 31% para 18% o número daqueles que veem um trabalho regular da Saúde. Ainda nesta pesquisa, há uma erosão entre instruídos e mais abastados, antes bases de apoio a Jair Bolsonaro. Jovens (16 a 24 anos, 45% de ruim/péssimo) e a população entre 25 a 34 anos (47%) são os que mais o rejeitam. A sucessão de ordens e contraordens na gestão da crise cobra um preço. Para 51%, Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda no combate ao vírus. Pensam o contrário 40% dos pesquisados.26
O que se pode afirmar, ante as pesquisas de opinião, é que, apesar do desgaste crescente, Jair Bolsonaro ainda tem apoio de uma parcela de seus eleitores, os adeptos mais radicalizados, de um setor do empresariado, de setores das Forças Armadas e das Polícias Militares, e de parte dos evangélicos das denominações neopentecostais. Porém, este apoio vem numa tendência de queda que pode piorar muito em abril, mês que terá aumento exponencial nos casos de coronavírus, um grande número de brasileiros sem muita estrutura para enfrentar a doença, óbitos, impactos na renda e dificuldades de acesso ao sistema de saúde (que tende a colapsar ainda em abril, especialmente em São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Amazonas e no Distrito Federal), além das epidemias já em curso como Gripes (Influenza e H1N1), Dengue, Chikungunya e Zica.27
3. Sinais de esperança
Em tempos assim, mais que nunca são necessários apontar caminhos e sinais de esperança. É importante perceber que somente a democracia, suas instituições, o conhecimento científico, o diálogo nacional e a participação da sociedade civil podem garantir uma estratégia de defesa da vida e do Brasil. O profundo baque econômico adveniente não pode ser maior que a defesa dos valores e da dignidade humana, com especial destaque aos direitos humanos, com prioridade ao atendimento às parcelas mais vulneráveis da população brasileira, num marco de solidariedade, caridade, justiça e paz.
Nesse sentido, a Igreja Católica será muito importante para mitigar a pandemia, especialmente entre os mais pobres, os vulneráveis, os excluídos, espalhados por todo o país, mas especialmente presentes nas muitas periferias. É importante que sejam compartilhadas e aprofundadas nossas experiências exitosas de solidariedade e caridade, tão ricas, que em diversos níveis já são fundamentais na realidade brasileira.
Deve-se insistir no diálogo político e construir ações concretas para evitar a desagregação social, econômica e política. Da mesma forma, na defesa dos mais pobres e vulneráveis deve-se, com base no ensino social, lutar pela custódia e salvaguarda da vida, da pessoa humana e da sociedade, do desenvolvimento integral e sustentável, em torno de uma economia solidária, mais ainda em tempos de uma “guerra”, como instituição profética ante à indiferença e o egoísmo, tendo a fraternidade como princípio regulador da ordem econômica. A subsidiariedade, a participação livre e responsável devem conduzir as relações políticas e sociais, com respeito aos bens da terra, num cuidado da casa comum, numa ecologia natural e humana de convivência, atacando as causas estruturais da desigualdade, raiz de todos os males sociais, conforme nos alerta o Papa Francisco,28 por meio de uma política que fortaleça a democracia.29 Temos que sair maiores que antes diante desta crise, como Igreja, como planeta e como Povo de Deus.
Nesse momento tempestuoso, mesmo ante alguns receios e limites, são necessárias outras ações: garantir que o Estado amplie o socorro e a atenção com a saúde, em todos os seus níveis, especialmente por meio do acesso público aos hospitais; defender permanentemente o Sistema Único de Saúde (SUS); acompanhar a sociedade civil na permanente vigilância no funcionamento das instituições políticas e democráticas; apoiar as autoridades públicas que estão adotando as medidas científicas recomendadas pelos centros de estudo; promover a renda mínima cidadã, tanto neste momento, como após a crise, como base de uma economia solidária e sustentável, com a urgência necessária que o tamanho da crise requer; evitar os inúmeros desequilíbrios regionais e apoiar iniciativas de articulação sanitária entre bairros, municípios, Estados e a União; garantir que os migrantes não sejam ainda mais prejudicados; evitar que os pequenos empreendedores, negócios e empresas sejam mais prejudicados na crise; atentar para a proteção e promoção das populações originárias e tradicionais; retomar e fortalecer os sistemas de assistência social como instrumentos de políticas públicas e cidadania; apoiar a educação pública; ampliar as medidas protetivas, além de urgente distribuição de cestas básicas e produtos de saúde; realizar atendimento solidário e espiritual; e promover o debate político transparente e ético, respeitando as divergências, insistindo nas convergências e reafirmando os princípios do ensino social da Igreja. Fazer isto e melhor é ser sinal de esperança nestes tempos. É o nosso ethos e a nossa missão. Ainda mais no período pascal que estamos vivendo. A esperança é a nossa fé. Ela é a última que morre. E, se morrer, ressuscita.30
NOTAS
1 Este texto é um produto da equipe de Análise de Conjuntura da CNBB. É um serviço para a CNBB. Não representa, contudo, a opinião da Conferência. A equipe é formada por membros da Conferência, assessores, professores das universidades católicas e por peritos convidados. São eles: Dom Francisco Lima Soares – Bispo de Carolina – MA, Frei Olávio Dotto – Pastorais Sociais/CNBB, Pe. Paulo Renato Campos – Assessor de Política da CNBB, Pe. Thierry Linard de Guterchin – Centro Cultural de Brasília – CCB/OLMA, Antonio Carlos A. Lobão – PUC de Campinas, Francisco Botelho – Perito, Gustavo Inácio de Moraes – PUC Rio Grande do Sul, Luiz Roberto Cunha – PUC Rio de Janeiro, Manoel S. Moraes de Almeida – Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, Marcel Guedes Leite – PUC São Paulo, Robson Sávio Reis Souza – PUC Minas e Melillo Dinis do Nascimento – Inteligência Política (IP). Este último ficou encarregado da sistematização. Esta análise é concisa e panorâmica. A equipe tem se reunido com frequência e oferecido à Presidência da CNBB análises considerando outros temas. Nelas há elementos estruturais, com a construção de conceitos e debates mais profundos. Existem muitas outras questões. Um único exemplo pode ajudar. Existem questões de ordem internacional que têm impacto profundo na realidade local. E uma relação com o Brasil. Assim, a tensão de autoridades do governo do Brasil com as chinesas (país que apoia várias nações na pandemia) deve ser acompanhado. Mas será discutido em outro momento.
2 Há sempre em análises de conjuntura uma proliferação de conceitos. E diversas formas de explicá-los. A mais razoável é aquela que lida com e a partir da realidade. Bento XVI e o Papa Francisco defendem o “realismo”. Cf. BENTO XVI, Deus caritas est, n. 1; FRANCISCO, Evangelii gaudium, n.n. 231-233; e GUERRA LÒPEZ, Rodrigo. Como un gran movimento. Mexico: Fundación Rafael Preciado, 2006.
3 Falava-se de um século de estagnação. Ver SUMMERS, Lawrence. “Reflections on the ‘new secular stagnation hypothesis’.” In: TEULINGS, Coen; BALDWIN, Richard (eds.). Secular Stagnation: Facts, Causes and Cures. London: Centre for Economic Policy Research, 2014.
4 Veja-se a Mensagem do Papa Francisco para o evento “A economia de Francisco”. Disponível em
https://francescoeconomy.org/. Acesso em 2 abr. 2020. Na crítica a economia existente, destaca-se o seguinte trecho: “Na Carta Encíclica Laudato si’ ressaltei que hoje, mais do que nunca, tudo está intimamente ligado e a salvaguarda do meio ambiente não pode ser separada da justiça em relação aos pobres, nem da solução dos problemas estruturais da economia mundial. Por conseguinte, é preciso corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito pelo meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, e equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das gerações vindouras. Infelizmente, ainda não foi ouvido o apelo a tomar consciência acerca da gravidade dos problemas e sobretudo a pôr em prática um modelo econômico novo, fruto de uma cultura da comunhão, baseado na fraternidade e na equidade”.
5 FRANCISCO. Evangelii Gaudium, n.n. 53-56: “Não a uma economia da exclusão. 53. Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população veem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados», mas resíduos, «sobras». 54. Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espectáculo que não nos incomoda de forma alguma. Não à nova idolatria do dinheiro. 55. Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo. 56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta.”
6 HAN, Byung-Chul. “La emergencia viral y el mundo de mañana”. In: AGAMBEN, Giorgio et al. Sopa de Wuhan: pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias. [S.l.]: ASPO, 2020. Haveria um excesso e uma depressão: “Los peligros no acechan hoy desde la negatividad del enemigo, sino desde el exceso de positividad, que se expresa como exceso de rendimiento, exceso de producción y exceso de comunicación. La negatividad del enemigo no tiene cabida en nuestra sociedad ilimitadamente permisiva. La represión a cargo de otros deja paso a la depresión, la explotación por otros deja paso a la autoexplotación voluntaria y a la autooptimización. En la sociedad del rendimiento uno guerrea sobre todo contra sí mismo”, p. 108.
7 Cf. MOÏSI, Dominic. The Coronavirus, a Geopolitics of Fears. Disponível em https://www.institutmontaigne.org/en/blog/coronavirus-geopolitics-fears. Acesso em 3 abr. 2020.
8 Disponível em https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-03/papa-francisco-coronavirus-genocidio-viral-juiz-argentino.html. Acesso em 3 abr. 2020.
9 Organização Mundial de Saúde.
10 Segundo o Ministério da Saúde, o número de novas ocorrências confirmadas por dia caiu neste domingo (05/04/2020) – foram 852 novos casos contra 1.222 registrados no sábado. No entanto, essa oscilação pode ser reflexo do ritmo de testagem, que ainda não é estável e pode variar a cada dia. Há, por conta da baixa frequência de testagem da COVID-19, uma subnotificação dos casos. O Ministério da Saúde trabalha com a hipótese de que apenas uma pequena parte – cerca de 14% – dos casos no país estão sendo identificados pelas autoridades. A estimativa faz parte de um estudo de modelagem que estimou que ao menos 86% dos casos da cidade chinesa de Wuhan, berço da doença, não foram detectados. Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Disponível em https://www.saude.gov.br/dados-e-indicadores-da-saude. Acesso em 6 abr. 2020.
11 Tome-se o número de leitos de UTIs no país: são 2,2 em média para cada 10 mil habitantes. Mas no SUS são apenas 1,4. Na rede privada, a média pula para 4,9 por 10 mil —mais um reflexo da concentração de renda de um sistema tributário regressivo, onde pobres pagam proporcionalmente mais impostos que os ricos e empresários recebem subsídios. Fonte: MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim epidemiológico nº 5 (13/03/2020). Disponível em https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/24/03–ERRATA—Boletim-Epidemiologico-05.pdf. Acesso em 4 abr. 2020.
12 Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim epidemiológico nº 6 (03/04/2020). Disponível em https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/03/BE6-Boletim-Especial-do-COE.pdf. Acesso em 4 abr. 2020.
13 Disponível em https://voxeu.org/article/economic-impact-pandemic-igm-forum-survey. Acesso em 4 abr. 2020.
14 Disponível em https://www.weforum.org/agenda/2020/03/a-u-s-recession-probably-depression-only-if-the-virus-is-untamed/. Acesso em 4 abr. 2020.
15 Cf. SOUZA JÚNIOR, José Ronaldo de C.; LEVY, Paulo Mansur; SANTOS, Francisco Eduardo de L. A. CARVALHO, Leonardo Mello de. Carta de Conjuntura – IPEA, nº 46, 1º trimestre de 2020. Disponível
em http://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/wp-content/uploads/2020/03/CC46_Vis%C3%A3o-Geral.pdf. Acesso em 4 abr. 2020.
16 No momento que produzimos essa análise surgem notícias de variadas fontes dando conta de um maior protagonismo dos militares na gestão do governo com o agravamento da pandemia no Brasil. É preciso observar o cenário político-institucional à medida que avança a doença.
17 Ele tem sofrido vários ataques por conta de seu protagonismo no combate a pandemia, especialmente do próprio Presidente da República, Jair Bolsonaro. No fim de semana, e na segunda-feira, 6 de abril, houve muitas notícias de demissão do Ministro Mandetta. Por enquanto, ele continua.
18 Projétil é qualquer sólido pesado que se move no espaço, abandonado a si mesmo depois de haver recebido um impulso inicial. No “A Sociedade do Cansaço”, Byung-Chul Han, há esta metáfora do projétil para ilustrar o que acontece conosco, sujeitos de desempenho: “A sociedade de desempenho é uma sociedade de exploração. O sujeito de desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente (burnout). (…) O projeto se mostra como um projétil, que o sujeito de desempenho direciona contra si mesmo.” Cf. HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 101.
19 Após o “presidencialismo de coalizão”, com (i) a cooptação sistemática de outros grupamentos políticos que estavam mais que disponíveis no mercado parlamentar e (ii) da captura organizada do Estado por interesses vários, cf. ABRANCHES, Sérgio Henrique. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 1988, p. 5-34. Aqui, p. 21: “O Brasil é o único país que, além de combinar a proporcionalidade, o multipartidarismo e o presidencialismo imperial, organiza o Executivo com base em grandes coalizões. A esse traço peculiar da institucionalidade concreta brasileira chamarei, à falta de melhor nome, presidencialismo de coalizão”), estamos na fase do “presidencialismo de colisão”, após Bolsonaro ter sido eleito numa onda de polarização, desencanto com a política e com os políticos, medo e tensão que se reproduziu no núcleo de seu governo e no modo de fazer política. Não é mais prioridade a coalizão. A colisão é a forma de enfrentar “tudo que está aí”. Na lógica do atual Presidente do Brasil, se o modelo de coalizão deu errado no passado, a única solução é a colisão. As características são: (a) um medo permanente contra um “inimigo”, amplificado por meio de atitudes “neopopulistas”; (b) o ataque às instituições democráticas; e (c) uma modificação profunda nos direitos sociais e constitucionais consolidados, no período anterior, após a Constituição Federal de 1988. Cf. NASCIMENTO, Melillo Dinis. Coalizão X Colisão. Disponível em https://inteligenciapolitica.com.br/artigos/coalizao-x-colisao-ip/. Acesso em 3 abr. 2020.
20 Segundo estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FespSP), robôs responderam por 55% dos 1,2 milhões de posts que usaram a expressão #BolsonaroDay para homenagear o presidente em 15 de março, dia de atos de rua pró-governo. De acordo com o estudo, há nas diversas redes sociais um exército de “bots” e ciborgues criados, cultivados e programados para destacar o assunto que for conveniente para quem os comanda, no exato momento escolhido para o ataque. Disponível em https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2020/04/03/55percent-de-publicacoes-a-favor-de-bolsonaro-no-twitter-sao-feitas-por-robos.ghtml. Acesso em 3 abr. 2020.
21 A frase do Presidente da República é “vai quebrar tudo”! Cf. SOARES, Ingrid. “Presidente prevê caos”. In: Correio Braziliense, política, p. 3, edição de 4 de abril de 2020.
22 Não é o único. Há outros. Jair Bolsonaro tem dado exemplos contra o isolamento. Além disto, ele vetou parte da lei aprovada no Congresso, que garantiu um auxílio emergencial aos necessitados, atrasando parte da efetivação da medida combinada com o Congresso Nacional pelo Ministro Paulo Guedes, da Economia.
23 Idem. No mesmo sentido, na imprensa internacional, ver: HARRIS, Bryan; SCHIPANI, Andres. “‘Captains Corona’ stakes political fate on ending Brazil lockdown”. In: Financial Times, p. 4. Edição de 2 de abril de 2020.
24 Sobre a diferença entre isolamento vertical e horizontal, ver o esclarecimento do Grupo de Trabalho Multidisciplinar da UFRJ para Enfrentamento da COVID-19. Disponível em https://www.ct.ufrj.br/comunicacao/news/coronavirus-o-que-sao-isolamento-vertical-e-isolamento-horizontal. Acesso em 4 abr. 2020. 25 XP Investimentos é parte integrante da XP Inc., que concentra diversas marcas do mercado financeiro. O Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), com sede no Recife – Pernambuco, é instituição sólida de estudos e pesquisas. Disponível em https://www.infomoney.com.br/politica/xp-ipespe-avaliacao-de-bolsonaro-chega-ao-pior-patamar-enquanto-governadores-e-congresso-ganham-apoio/. Acesso em 3 abr. 2020. A equipe teve acesso a pesquisa completa.
26 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/aprovacao-do-ministerio-da-saude-dispara-e-e-mais-do-que-o-dobro-da-de-bolsonaro-diz-datafolha.shtml. Acesso em 4 abr. 2020. Há que se diferenciar pois, ao contrário das anteriores, esta pesquisa foi realizada por telefone. A aprovação geral, ainda que não seja comparável metodologicamente a pesquisas presenciais anteriores, vai, contudo, em linha com o apoio geral do Presidente no eleitorado.
27 Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim Epidemiológico 14, vol. 51. Abril de 2020. Disponível em https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/03/Boletim-epidemiologico-SVS-14.pdf. Acesso em 6 abr. 2020.
28 FRANCISCO. Evangelii Gaudium, n. 202.
29 SÃO JOÃO PAULO II, Centesimus annus, n. 46.
30 Esta frase foi escutada de Dom Pedro Casaldáliga, bispo e poeta, e aqui registrada: https://www.facebook.com/conselhodeleigos/posts/2413924665361561/. Acesso em 3 abr. 2020.