Arquidiocese de Botucatu

HOMILIA PARA O XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 22,34-40:

O evangelho deste trigésimo domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo 22 do evangelho de Mateus, o qual apresenta o último conflito entre Jesus e as lideranças do povo. Devemos sempre situar a cena em seu contexto. Jesus está em Jerusalém e ali acirra-se a resistência, a recusa e a rivalidade por parte dos chefes do povo. Nesta perícope, o evangelista apresenta o último ataque empreendido por eles contra Jesus.

No templo, Jesus tratou desmascarar as ações dos chefes, acusando-os de ladrões e assassinos. Ladrões, porque cooptavam o povo simples para si, usurpando o lugar de Deus, e assassinos, porque o faziam pela força. Diante deste agouro provocado por Jesus, as autoridades tratam de deslegitima-lo diante dos seus seguidores. Todavia, Jesus sai sempre vencedor destes conflitos, e seus seguidores, por outro lado, seguem entusiasmados com Ele.

“Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus” (v.34). O narrador se refere ao questionamento que os saduceus fizeram a Jesus acerca do tema da ressurreição dos mortos. Os fariseus, tendo conhecimento do fato, “reuniram-se em grupo” para novamente testarem a Jesus. Aqui, o autor do evangelho serve-se do Sl 2,2, onde se lê que “os reis da terra se reuniram” contra o Senhor Deus de Israel. Mateus opera a reinterpretação do texto do salmo à luz de Jesus, de modo a iluminar a vida da sua comunidade de fé que passa à limpo a vide de Jesus de Nazaré, a fim de reconhece-lo messias esperado.

Quem lhe dirige a pergunta é um legista, ou seja, um doutor da lei, o qual tinha um valor e peso muito altos em suas palavras, somado ao fato de que era um perito da Escritura; os fariseus unem forças com esse outro grupo visto que no texto bíblico do domingo passado saíram frustrados ao juntarem-se com os herodianos na questão do imposto. Os fariseus, unidos aos doutores da lei querem tentar a Jesus. Mateus utiliza o verbo “tentar” (gr. πειράζων / peiráson), que já apareceu no capítulo 4, na narrativa das tentações no deserto, por parte de Satanás. Este verbo segue sendo utilizado pelo evangelista para ilustrar as ações dos fariseus, escribas, saduceus frente a Jesus. Ora, o que Mateus está querendo insinuar para a sua comunidade é que os chefes religiosos do povo, ao invés de serem instrumentos de Deus, estavam a serviço do opositor, de Satanás; do Diabo, aquele que gera a divisão. Enquanto o Deus de Jesus é amor que se coloca à serviço, o deus deles é o poder que deseja dominar. Aquele que está ao lado do poder age conforme Satanás.

Eis a tentação: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” (v.36). Novamente o título de mestre aparece na boca daqueles que se posicionam hostis a Jesus. Atenção: a pergunta não está colocada com a intenção de se recolher através da resposta um ensinamento importante, mas está posta na intenção de condenar. Os doutores e fariseu sabem qual é o maior mandamento da lei de Moisés: é o mandamento do repouso sabático; a prescrição para guardar o Sábado. A observância deste único mandamento correspondia ao cumprimento de toda a lei. Sua transgressão equivalia à transgressão de todos os outros mandamentos. Para isso estava prevista a pena de morte.

Mas por que interrogam a Jesus sobre isso? Evidentemente porque Ele já havia atuado em dia de Sábado, em favor da gente simples e sofredora. Quando Jesus foi interrogado pelo jovem em Mt 17, ao elencar os mandamentos, Ele deixa de fora da lista os três primeiros mandamentos e grandes mandamentos relacionados exclusivamente à Israel. E indicou aqueles que encontram-se ligados às relações humanas e fraternas, e, que, por sua vez, adquiriam relevância universal, e não aqueles que ficavam confinados ao povo de Israel.

Jesus responde à pergunta-armadilha sem citar os mandamentos. Ele responde com a profissão de fé religiosa do povo de Israel, contida em Dt 6,4, o Shemá (Escuta, ó, Israel), ainda que Mateus omita a ordem/verbo “escuta”, ao contrário de Marcos, que o explicita. “Jesus respondeu: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento!” (v.37). Interessante é a mudança (ou releitura) que o próprio Jesus faz do Shemá. No texto contido em Dt, não aparece a palavra entendimento/mente, que Jesus se serve, mas a palavra “força”.

Ora, na compreensão e experiência de Deus que Jesus faz e transmite através de sua vida, o Deus de Israel não é aquele que se alimenta e consome-se da força vital do ser humano, do homem de fé; mas é aquele que dá a vida, que promove o nutrimento do homem. O Deus de Jesus não é um deus que pede, mas que dá, oferece-se e propõe-se em gratuidade.

Jesus acrescenta que este é o maior de todos os mandamentos. Mas este não é um mandamento. Ele, então, o eleva à condição de mandamento. Na perspectiva de Mateus, Jesus atua na ruptura, continuidade e superação da história de seu povo. Imediatamente, acrescenta: “O segundo é semelhante a esse: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (v.38). Ele toma a prescrição de Levítico relacionado ao amor ao próximo. Para Ele, não há relação de amor com Deus que não passe pela relação humana e fraterna com o próximo, com o outro.

Se faz necessário questionar-se sobre o seguinte: é difícil entender como que um doutor da lei interroga a Jesus sobre a pergunta mais simples: Qual o maior dos mandamentos. Qualquer criança do ensino básico, bem como o bravo israelita, ao acordarem pela manhã rezam a profissão de Fé “Shema Israel”. Imagine-se o doutor da lei, diante de Jesus, chamado por todos de mestre, fazendo uma pergunta concernente a um aluno de primeira série do ensino religioso.

Jesus responde tranquilamente. Ele sabe a resposta: “Amaras o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda alma e com todo o teu entendimento”, isto é, com todo o teu “ti mesmo”. Este é o maior e primeiro mandamento. O segundo é igual: “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Interessante: à Deus, com o todo de “ti mesmo” e ao próximo como ti mesmo.

Na lista formal e oficial das seiscentas e treze prescrições, elaboradas por Maimonedes, o mandamento “amarás o teu próximo como a si mesmo”, ocupava o ducentésimo sexto (206º) lugar. Antes deste, portanto, vinham duzentos e cinco mandamentos. Jesus o desloca de lugar, colocando-o em segundo, e igual ao primeiro. Ora, recordemos que toda a cena deste confronto acontece ao interno do Templo de Jerusalém, quando todos estão ali para cumprir o Primeiro mandamento; quando todos estão lá para olhar para Deus e amá-lo. Daquele lugar, Jesus se lembra do próximo. Não há como amar à Deus sem que se ame o próximo. Toda a Lei e os Profetas se sustentam nestes dois mandamentos.

Não são dois mandamentos a mais, de uma lista maior. Não. Eles são os sustentáculos de toda a Escritura viva que norteia a vida do homem. Jesus já havia dito isso no Sermão da Montanha, quando disse “faça aos outros aquilo que os outros façam a você”, e acrescentou que toda a Lei e os Profetas, dependem disso. Um paralelo com o Evangelho de João é oportuno. O evangelista sintetiza os mandamentos num único mandamento: “amar ao próximo”. E é interessante que, no momento em que se discute sobre a autoridade de Jesus, ele recorda ao legista – aquele que tem autoridade de fazer e explicar as leis, e quase sempre em benefício próprio – que o poder de Deus está em comandar o que é impossível e exigente, o amor. Nenhum poderoso tem um poder tamanho que possa dizer “você tem que me amar”. Não se obriga ninguém a amar. No momento que Deus diz que o primeiro e o segundo mandamento enquadram-se no amor, Ele está renunciando a ser amado. Consequentemente, a única atitude que ele tomará será a de nos amar por primeiro, como nos dirá o Quarto Evangelho.

Toda a narrativa se dá ao interno do Templo de Jerusalém. Aquele templo que, na época de Mateus, já não existia mais. Havia sido destruído pelas legiões romanas. O evangelista, com esta reinterpretação feita por Jesus, que recupera para a sua comunidade quer dizer: “o verdadeiro templo é você mesmo”, “com o todo de ti mesmo, tu amas a Deus; como a ti mesmo, tu amas o teu irmão”. Este é o templo e o culto que agradam a Deus e que nos insere na pedagogia de Jesus.

Quando todos olham para Deus, então Jesus reorienta o olhar para o irmão. O amor à Deus passa pelo amor, pelo cuidado, pela compaixão para com o próximo. Este é o culto agradável à Deus. Não há outro. Qualquer outro é ilusão e mentira. Muitas vezes transformamos a religião em algo que é “para mim mesmo”; isso será o estrago maior para a religião.  Ela não é para mim. Ela é para Deus e para o irmão.

Na sua resposta Jesus elenca não um, mas dois mandamentos presentes na lei mosaica, um do Deuteronômio (6,5), e o outro no Levítico (19,18). Em concreto, ele quer afirmar a equiparação prática entre o amor a Deus e o amor ao próximo. Os dois mandamentos estão implicitamente situados no mesmo pedestal.

Jesus conclui sua resposta, dizendo: “Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (v.40). Lei e Profetas são a síntese das escrituras sagradas de Israel. Jesus, ao elevar à condição de mandamento o amor à Deus e ao irmão, está dizendo que toda a Sagrada Escritura (Lei e Profecia) se alicerça nesta ordem relacional, neste modo de ser e de existir a partir do horizonte de Deus, encarnado na história, através do amor para com o próximo.

Por fim, uma vez mais Jesus sai vitorioso da armadilha pretendida pelos chefes do povo, no intuito de deslegitimá-lo. Jesus sai vencedor ao proclamar uma nova realidade nas relações entre Deus e o ser humano, não mais embasada sobre a prática e observância dos preceitos da lei, mas sobre a acolhida e a prática de Seu amor.

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.

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